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Antes do pó (Before the dust) 2018. Exposição individual. Galeria Virgilio, São Paulo, Brasil. Foto: Paulo D'Alessandro

Nos olhos de Adriana Affortunati, as mãos do tempo laboram a finitude das coisas. A artista espreita o trabalho da decomposição como quem contempla a verdade do mundo – o ser-para-a-morte – e deseja exibi-la. É por isso que, armada de palpos e antenas, a artista está à cata das coisas que apodrecem em silêncio, que expressam a melancolia da disfunção, das coisas encolhidas num cantinho do mundo, desprezadas, das coisas que jazem no olvido-tumba. Desse passeio apaixonado pela obra ruinosa do tempo, nasce o gesto de eleição e recolha que arranca velhos lençóis, troços de concreto, pedaços de mangueira, cascas de ovos – e outros restos – do abandono mundano, ao qual foram relegados, para entregá-los ao zelo da instauração estética. Em seu ateliê, a artista cuida para suscitar, no próprio objeto degradado, a forma da precipitação no nada, que o laboratório do tempo produz sem alarde e o temor humano da morte oculta escandalosamente. A artista catadora, portanto, em seu processo criativo, intercepta e suspende a catástrofe. O título Antes do pó expressa precisamente esse gesto que surpreende os objetos à beira do precipício. O poeta diz que as coisas são tristes consideradas sem ênfase. Essa ênfase, a artista doa para dar a ver a alegria formal insuspeitada na deformidade das coisas tocadas pelo dedo da morte.



Fiel à verdade do objeto, Adriana não interfere na marcha de sua finitude. Os vincos dos vidros, foi o tempo que abriu, foi o tempo que desfez o ovo em cascas e espalhou a nódoa da sujeira e o trauma do desgaste na superfície de tecidos e outros materiais recolhidos. O trabalho destrutivo do tempo consiste em apagar a finalidade ao qual o objeto se conformava, logo, em retirar-lhe a forma que o vivificava enquanto coisa útil. O trabalho criador da artista, por sua vez, consiste em decidir quando esses objetos, despidos da conformidade aos fins da serventia, se prestam a manifestar uma forma nova, que emerge das profundezas do estado de degradação. A atenção dada pela artista ao que é desprovido de ênfase e função instaura outra conformidade a fins, à qual o objeto parecia irremediavelmente avesso, e cuja natureza já não é mais técnica e sim propriamente estética. É notável que a aparência aflorada pelo trabalho da artista não oculta a essência mortal do objeto, ao contrário, visto que tal aparência se desenha e ressalta por meio dos traços e texturas da face moribunda.



Para dar a ver a forma estética que surge do apagamento da forma útil, a artista lança mão, por um lado, de um dispositivo de mostração, ao sustentar o objeto por meio de pregos, enfatizando, com esse modo de exibição, sua compleição particular, e, por outro lado, de um dispositivo de composição, que faz as diversas compleições se refletir entre si. Ambos os dispositivos, sustentação e composição, operam aqui especificamente. Na mão direita o martelo, na mão esquerda o prego, a artista, em Antes do pó, não liga coisas a coisas, como ocorre em outras de suas obras, ou seja, a sustentação não opera uma aglutinação de objetos que presentifica a aparência estética da ruína coletiva e confusa, organizada pela artista, aparência esta antes velada na acumulação meramente caótica dos escombros produzidos pelo tempo. Em Antes do pó, diferentemente, a artista, a golpes de martelo, pendura as coisas, prendendo-as no espaço da contemplação – que nada tem a ver com o espaço da utilidade – operando, assim, o ressalte da forma particular de cada objeto amortecida na consideração inenfática de sua ruína. Neste passo se revela a duplicidade da operação fundamental do processo criativo de Adriana Affortunati, a suspensão. Suspender é sustar e suster. Suspendendo o objeto, a artista susta sua precipitação no abismo e sustém a forma que irrompe dessa precipitação interrompida. Em Antes do pó, a mostração separada das formas pelo dependurar no prego valoriza, de maneira notável, a potência plástica inerente ao material dos objetos. Assim ocorre com os tecidos, que, pendurados, tombam sem cair e, logo, prestam-se a ser escultura cuja plasticidade se configura espontaneamente; de outra maneira, sem a sustentação do prego, jazeriam no chão do informe. Algo semelhante acontece com os troços de concreto, os quais, erguidos pela sustentação do prego, manifestam um modelado inesperado que, fossem os troços abandonados ao entulho, seria reprimido pelo pó da demolição.



Relativamente ao dispositivo de composição, o trabalho da artista manifesta um cuidado tão afetuoso quanto o cuidado presente na sustentação. Nesta, era o zelo contemplativo de uma conformidade a fins plástica, instaurada no corpo corrompido, que levava à decidir a prontidão da coisa para ser objeto estético. Na composição, é a vez do zelo experimental, que, tateando convivências possíveis, leva a decidir a disposição pertinente dos objetos, que se anima por meio do reflexo recíproco das formas estéticas que a sustentação faz eclodir da catástrofe. Nesse sentido, a instalação de Adriana é, a um tempo, paratática e hipotática, numa subversão lógica de que só a arte é capaz. Paratática, já que os objetos suspendidos, de modo autônomo, sustam o desaparecimento na ruína do imprestável e sustêm a aparição estética da decomposição. Hipotática, uma vez que a suspensão coletiva integra os vários objetos por meio de uma reflexão que mantém juntas as presenças objetais entre si, permitindo a representação do conjunto como instalação. O trabalho compositivo da artista, por conseguinte, não resulta numa montagem de objetos segundo uma sequência de apresentação, mas tem como efeito a contaminação mútua dos objetos, que transmitem uns aos outros tanto a enfermidade da disfunção deformada quanto a vitalidade formal que emerge dos germes da deterioração. O efeito de contaminação mútua dos objetos provocada pelo trabalho compositivo se intensifica em Antes do pó pelo predomínio do branco, não asséptico, mas sujo. De fato, a brancura manchada pelo não-ser reforça a suspensão (sustação e sustentação) do desabamento no nada, já que preserva a palidez da deformidade do fim e o brilho da nova conformidade a fins que a artista instaura. O predomínio da brancura encardida, portanto, favorece a transformação da iminência do pó informe em eminência da potência formal.



Antes do pó ressignifica o silêncio da morte. Esse silêncio nasce do medo do não-ser, o qual o ser humano evita encarar distraindo-se na cotidianidade ruidosa dos objetos funcionais. Ao dar novo sentido a esse silêncio, a obra desvela, pelo espanto, a verdade temerosamente ocultada de que o tempo labora, inexorável, a finitude das coisas. O que se fustiga, assim, é o imperativo de permanência renovada, patente mais do que nunca no mundo virtual das tecnologias contemporâneas, onde os objetos são, falsamente, jovens para sempre. Mas o empreendimento não é somente negativo, já que a obra não se esgota na exibição da deformação mórbida. Graças à alquimia criativa, a artista logra mostrar que a matéria envilecida ecoa o quebranto da morte e sussurra o segredo da beleza.

2018. FRANCISCO ROCHA

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