Alberto D’ Avila Coelho, Doutor em Artes Visuais, professor do IFSul-Riograndense
Do nada da matéria em si: uma poética com o caos
Sabemos, hoje, que o ato de encontrar e o de deslocar um objeto cotidiano, às vezes um fragmento dele, realizado pelos artistas, faz com que um significado primeiro, uma funcionalidade, seja abandonada a favor de uma multiplicidade que remete a novos signos. Estes movimentos desterritorializadores, que elevam um objeto em sua materialidade física e fator conceitual a outro plano, assumem nas proposições dos artistas
contemporâneos, nuances cada vez mais inventivas, como é o caso da artista visual paulista Adriana Affortunati (1982). Em suas obras ela utiliza objetos encontrados e recolhidos do cotidiano, o que permite abrir diversas linhas de pensamento. Uma delas segue os referenciais da história da arte, como a presença do objet trouvé (objeto encontrado), exercício que estimula pensarmos e sentirmos o que a artista em sua
poética propõe experimentar e que constitui o mundo contemporâneo. O que nos sugere a poética visual de Adriana? Encarnam-se outras possibilidades de existência dadas pelo campo de forças da arte e da experiência estética. Vamos, nesta breve apresentação da artista, dar atenção às possibilidades de levar tal prática poética ao campo da Educação, da docência e da sala de aula.
Objetos e materiais alheios ao plano de composição técnico tradicional da arte começaram a aparecer primeiro nas colagens de artistas cubistas e surrealistas. Foram obras realizadas com pedaços de jornal, imagens fotográficas, pedaços de tecidos, materiais naturais como folhas secas e
outros tantos objetos. Como exemplos, destacam-se as obras de George Braque (1882-1963) “Natureza-morta com às de paus”, de 1911; de Pablo Picasso (1881-1973) “Natureza morta com cadeira de palha”, de 1912 e “Guitarra”, de 1913, na qual ele emprega carvão, óleo, giz e jornais colados sobre tela. Do pintor surrealista Max Ernest (1891-1976) surgem colagens nas obras “Duas crianças ameaçadas por um
rouxinol”, de 1924, e “Fruto de uma longa experiência”, de 1919. Assumindo a tridimensionalidade como espaço de experiência, anunciando o que iríamos conhecer como instalações, temos do artista Kurtz Schwirtters (1887-1948) os seus “Merz”, de 1919. Neste percurso histórico, lá pelos anos 50, apreciamos as assemblages do artista francês Jean Dubuffet (1901-1985), teórico da Arte Bruta. São montagens que vão além das colagens. Em destaque uma obra feita com asas de borboletas cujo título é “Jardim de Bibi Trompette”, de 1955.
Selecionar Adriana Affortunati para a coleção do Arteversa, supõe uma dúvida primeira: será que o dadaísta Marcel Duchamp (1887-1968) projetava o alcance de seus readymades ao longo da história? Em como seriam seus desdobramentos? Duchamp, como o senhor dos objetos prontos, assumindo limites extremos, abriu a discussão sobre “o que é arte?”. Em 1913, tomando uma roda de bicicleta e a enroscando em um
acento circular de um banco de madeira, designou tal objeto como “obra de arte”. Não podendo ser mais óbvio deu-lhe o título de “Roda de bicicleta”. Naquele exato momento, por uma atitude radical, ele colocava em questionamento as ideias preconcebidas quanto a uma definição de arte. Possuidor de uma irreverência ímpar, pode-se considerar bastante original sua abordagem, um enfrentamento direto aos valores morais
que impregnavam o campo da arte e da sociedade no início do século XX, já em processos de modernização. Sua atitude foi mais extrema quando criou “A Fonte”, em 1917, obra que ganhou maior divulgação. Inscrita em uma exposição, o público visitante encontrava um mictório de
porcelana branca assinado com o pseudônimo de R. Mutt, sobre um cubo de madeira.
Na linha histórica, que fixa alguns artistas europeus, encontramos artistas brasileiros que antecedem Adriana Affortunati, ao usarem objetos cotidianos descartados e materiais não tradicionais em suas produções plástico-visuais, como Hélio Oiticica (1937-1980) e seus Bólides (1963) e
Rubens Gerchman (1942-2008) com a série Caixas de Morar (1966). São trabalhos realizados a partir dos anos 60 cuja linhagem se desenvolverá de maneira bastante profícua nas próximas décadas, tempo de formação de uma infindável lista de artistas que utilizarão objetos
e materiais inusitados em suas obras.
Indagamos acerca dos readymades na arte atual, da presença de objetos cotidianos nas obras de artistas que seguem o percurso preconizado por Duchamp: como seus autores ampliam as possibilidades, desdobramentos que produzem diferença no campo da experiência estéticas com
arte? Quais propostas avançam e singularizam novos procedimentos misturando-se com as subjetividades do seu tempo? Produções com materiais inusitados ainda seguem desafiando o conceito de arte, mas, em muitos casos, encontramos traços que fazem provocações para além
da pergunta de Duchamp.
Visitar uma exposição de Adriana Affortunati é entrar em relação intensa com um pedaço de caos restituído pelas forças de criação, materializado por objetos de toda ordem e tratados por várias linguagens expressivas (site specific, objetos, instalações, fotografias…). Ela nos diz que trabalha o tempo em suas obras, “o tempo que corroi a matéria”, operando com formas que habitam locais de descartes, coisas empoeiradas e em condições precárias. Do nada da matéria em si ela cria uma poética com o
caos.
Acompanhar por um instante a trajetória de Adriana Affortunati, ouvi-la em um vídeo ou ler sobre seus trabalhos, consiste em uma tarefa que nos permite atualizar as produções artísticas realizadas nestes mais de cem anos que se passaram depois de Duchamp, em como a arte veio se emaranhando com um viver intensivo. É neste sentido que vemos a artista tocar o sensível, ao trazer à nossa presença destroços, dejetos, sobras, enfim, o “inútil” de um mundo sempre em desconstrução/ reconstrução, que forma fissuras e abre percursos. Há uma escuta do material que faz sentir a vida em sua finitude, fluxos de passagens por um tempo de sofrimento e abandono, mas que exercem potência ao viver. Por interações e estranhamentos provocados pela linguagem da arte, sem deixar de considerar o jogo ético-político que se trama, a
realidade tão massacrada pelo clichê e o lugar comum sofre abalos com processos que afirmam as condições humanas e não-humanas de um tempo por vir. Neste momento, cabe indagarmos: como me faço outro neste contexto? Como difiro-me de mim mesmo quando me encontro capturado pelo campo de forças da arte? Sou capaz de perceber que este processo transformador ocorre por agenciamentos coletivos? Que somos coletividades em deslocamentos e devires?
Pela experiência alcançamos outros sentidos que a imaginação nos deixa inventar. Em seu mundo, com gestos delicados e ásperas superfícies, Adriana costura saquinhos de chá já utilizados, torce tecidos, prega placas e travesseiros sobre madeira. Compõem obras com carpete, cimento, ferro e cola seca. Articula intervenções com tecidos antigos rasgados e metal. Objetos encontrados, como o espelho de um
carro, utensílios de cozinha antigos, lã de ovelha e rolhas de cortiças, ganham uma existência própria, um outro lugar na cadeia das formas e das forças ativadoras da vida. Luvas usadas de borracha e pregos. Livros antigos e metal enferrujado. Frase datilografadas em papel envelhecido funcionam como um lindo painel com molduras escuras. Esculturas de nós. Figuras aformais para fabular novas formas. O disforme
como potência para criações. Não há outra maneira de pensar e sentir a poética visual de Adriana Affortunati senão pelo trânsito perceptivo e afectivo que os materiais e os objetos presentes suscitam aos corpos. Despertos pela presença dos materiais recolhidos pela artista, lembramos do preparo de uma aula de arte, e em como eles se aliam a elaboração de nossas práticas pedagógicas. Os acompanhamos por toda parte, em nossa casa, nas calçadas, pelo pátio da escola, em lojas… O que faz perguntar: como fazer ver
no “inútil” a duração de aion, tempo da criação? Quando pensamos em uma aula de arte, quando buscamos pelos materiais a serem utilizados, o que as obras de Adriana nos apontam como possibilidades inventivas e notáveis? Como construir outros mundos sobre escombros? Outras aulas, outras escolas, outras
vidas?
Envolvidos com estas questões adentramos nós, professores de arte, ou interessados, em um campo produtivo de saberes. Implicadas com os efeitos das materialidades das obras que nos fazem pensar e alterar os modos de ser professor, quando misturadas ao plano de sensações da arte, as experiências com arte podem efetuar a construção de outras docências, uma vez atentos ao que se passa. Somam-se sensações por estranhamentos, encantos e espantos, acontecimentos processados em nós e levados a nossos alunos, são disparadores para se pensar a vida em sua heterogeneidade e produção de diferença, e que tem um jeito especial de ocorrer, afinal nos encontramos no campo de forças da arte.
Importa gerenciar estas linhas que se emaranham e construir um território de passagem identificado com as efemeridades e as transitoriedades que a vida inventa e impõe, e em sinergia com a arte.
Referências
ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: do iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
ADRIANA AFFORTUNATI.
Disponível em: https://www.aaffortunati.com/restauro
Ateliê do Artista: Adriana Affortunati. Revista Bravo.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KT0IXPnN-q0
ARTEINFORMADO. Espacio ibero-americano del arte.
Disponível em: https://www.arteinformado.com/galeria/adriana-affortunati/gorgonas-18595
Enciclopédia Itaucultural
Disponível em: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo5370/ready-made
ENTREVISTA COM A ARTISTA ADRIANA AFFORTUNATI. ArtSoul – Sua conexão com a arte contemporânea.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yvFeIqX11KY
Hallstatt AIR. Adriana Affortunati. FS1.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LRjRs6LARew
Prosa com poeta: Adriana Affortunati
Disponível em: https://oanjosuicida.wixsite.com/prosacompoeta/post/prosa-com-poeta-adriana-affortunati
TROUVÉE, 2018 (1 Coleta).
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tkewWtYNKeg