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Dias, 2012.

Arcabouços da memória



O ocre e suas diferentes tonalidades não são apenas cores nos trabalhos de Adriana Affortunati. Incrustados na obra, esses tons carregam resquícios da memória. Há certa viscosidade aderente nas lembranças da artista. Sendo quase uma espécie de betume amorfo que se alastra, suas reminiscências são arrancadas de seu corpo na medida em que se transformam em uma arquitetura da memória.



A instalação O que me crio (2008), feita com caixas de papelão, linha vermelha, barbante, e pequenos objetos pessoais de seu passado, é um armazém de relíquias. Gavetas, cantos, escaninhos não são suporte para esses objetos, mas uma edificação de recantos da memória. As marcas do passado estão lá, mas são esquivas, veladas, fragmentadas. Arquitetar lacunas significa costurar o vazio entre objetos. Sustentar-se nesse intervalo, e lançar linhas nas margens a fim de erguê-lo e suportá-lo, é um trabalho de fôlego. Como um afogado em busca das bordas ou um alpinista que engancha suas âncoras em pequenas saliências da montanha, Adriana Affortunati procura objetos capazes de aportar evasões da memória.



Na exposição coletiva Entreatos, na Casa Contemporânea, Adriana apresenta uma pequena escada, bastante precária, flutuando no corredor externo da casa em reforma. Outra escada, paralela ao teto, ajuda a compor Céu de cafundéu (2010). Esses degraus não conduzem as pernas, mas o olhar. A direção é o teto, que revela a memória do local. Sem revestimento, as tripas do lugar estão escancaradas. A estrutura de madeira do teto faz uma bela composição com a obra feita com o mesmo material. Cacos de cimento, espalhados sobre uma tela de aço, formam um desenho enigmático, cuja beleza é ressaltada com a incidência da luz que vem das frestas do telhado.



É interessante notar o recorrente uso da linha vermelha no conjunto das obras dessa artista. O vermelho desses fios indica que, embora conteúdos do passado sejam componentes importantes da memória, ela pulsa viva no presente. Essas veias vibrantes expressam, simultaneamente, feridas e cicatrizes. Costuras, nesse caso, são espécies de ataduras. Cingem o irreconciliável.



Cascas de ovos costuradas indicam a precariedade do Abrigo (2010), que precisa ser cuidadosamente remendado. O risco é de que, ao alinhavar fissuras, as bordas se estilhassem ainda mais. Escavar a memória tem efeito semelhante: cavoucadas, as chagas amortecidas pelo tempo podem sangrar ou gangrenar.



Não só de dores é feito o passado. As marcas de pó de café no algodão da obra Livro (2010) mostram a delicadeza e a suavidade da memória.

Trata-se de uma espécie de livro- nuvem, exposto no relicário de uma casa. Páginas contínuas escorregam desse vão para os degraus da escada, formando curvas e dobras. Convite para leitura do inefável, esse objeto lança o espectador ao vôo. Planar através das nuvens transcorridas é viajar por desenhos, escrituras, figuras. Ler esse livro é refugiar-se em suas dobras e desvios. O objeto transporta para uma zona onírica, na qual as lembranças se tornam ficção.



Continente (2010), por sua vez, forma uma espécie de mapa do continente sul-americano com coadores e tintura de pó de café. O título indica uma geografia de manchas, marcas, rastros. Essas diferentes bordas costuradas umas às outras, assim como os tecidos pelos quais houve a passagem da água quente, preservam sabores, o calor do líquido, o aroma do café. São registros de uma tarde de conversa, uma noite fora, uma madrugada de trabalho. Nesse sentido, esse Continente (2010) geográfico também contém, guarda, acolhe sensações efêmeras.

O manto, feito de saquinhos de chá costurados e manchados, também obedece a lógica semelhante. O título, porém, dá novas pistas. Tarde (2013) é o período do dia adequado para um bom chá.



Numa tarde de inverno, numa conversa entre amigos, numa noite solitária diante da TV, o chá é substância que aquece, integra, consola. Entretanto, a palavra tarde tem outras implicações. Tarde é termo usado para aludir a promessas, anseios, desejos postergados ou negligenciados. Dizemos; “Agora é tarde” para exprimir sonhos acalentados que deixamos de lado. Também é palavra usada pelas mães para impor limites aos filhos, que querem prosseguir em suas atividades além da hora convencional. O tempo tarde é um tempo deslocado, fora de lugar e de possibilidade.



Uma ambiguidade faz parte desses trabalhos: por um lado, a materialização da memória significa desgarrar-se da consistência afetiva do passado, infiltrado em seus tecidos. Por outro, parece ser difícil se desvencilhar de lembranças e descolar a obra de sua trajetória. Sendo a memória intangível, essas obras são uma busca incessante por apreender indícios de uma história pessoal. Em muitas delas, frases obscuras indicam a potência do passado na vida recente. Invento minhas próprias grades suscita a pergunta sobre o que verdadeiramente nos prende. Receios, culpas, incertezas são fantasmas longínquos que assombram o presente. Ou A gente insiste em acreditar nas palavras, que revela a insuficiência do verbo, mas a necessidade perpétua de proferi-lo.



Palavras ou objetos recriam o passado sem jamais alcançá-lo. Uma distância intransponível se anuncia a cada passo dado, rumo aos arcabouços da memória. Adriana Affortunati, todavia, transpõe para a atualidade pedaços, estilhaços, ruínas que restaram dos caminhos percorridos. Nem longe, nem perto, esse passado a alimenta.

Alusões a ele, porém, são como as frases inscritas, quase ilegíveis.

Pela primeira vez, as palavras se destacam e aparecem emolduradas nesse conjunto de frases que compõe a obra Dias (2012). Quase como imagens de reminiscências, esses fragmentos reverberam principalmente pelos intervalos deixados entre as molduras. O hiato entre os fragmentos ressoa de forma prolixa.



São palavras que se comportam como aquelas proferidas na peça Dias felizes, de Beckettº. Winnie, personagem atolada no meio do palco, se perde entre as miudezas do cotidiano. Seus pensamentos entrecortados são pronunciados e caem rapidamente no nada. As obras de Adriana Affortunati se aproximam dos pequenos dilemas de Winnie: coleções de restos à beira do nada ressuscitados nessas formas impregnadas de passado.


º BECKETT, S. Dias Felizes. São Paulo: Cosac Naify, 2010

2012. ALESSANDRA AFFORTUNATI MARTINS

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