Por um fio. Exposição na Galeria Gare. Produção Grou Cultural. São Paulo outubro 2022
Por um fio
Exposição de Adriana Affortunati
Texto de Francisco Rocha
O ateliê da artista é o salão da vidente. Artevidente, desvela nossa riqueza única: ver,
além da túnica do uso, o semblante inquieto da coisa puramente existente. Um olho solitário se choca com as coisas, do qual estas são testemunhas. A coisa, então, se evidencia e olha a gente: vide a vidente.
A vidência da artista se torna evidência da vista quando, pela graça de um gesto, por um gesto de graça, o objeto indiviso mostra seu viso vário, e, no visual desavisado, aflora o
visionário. Enquanto choque com a matéria, a vidência é presságio sem imagem e dá passagem ao viso vário, no visionário, com um passe de visagem.
A artista vidente cerra as pálpebras e abre as mãos para ver: o que visa, sem aviso, é topado pelo olho tapado da tatilidade, entre apalpos e tateios, pois a visagem vazão do viso vário se dá pelo convívio carnal com o material elástico e desistido de velho tecido,
de plástico usado: cobrir-se, cheirar, sujar-se, amassar, esticar, rasgar, amarrar, esperar tornar-se. Doravante, o objeto ali está, chocante, a nos olhar, não como objeto achado, mas, pelo choque com o corpo da artista, chocado.
Por um fio, se a amarração sem nó suspende o tecido sem corpo cabide. Em
queda livre, entregue à mera força da gravidade, o tecido cai como a veste do nada, na moleza esparramada, vago ao visual. Com a amarração serviço de vidente ––, o tecido sem corpo cabide não cai a esmo, cai em si mesmo. E assim, caído em si, o tecido cai bem, dele próprio vestido.
No entre dois vagante de forças adversas repuxo da gravidade e empuxo da amarração a insustentável firmeza do tecido é sustada na dobra sobre dobra, barra oca que es barra noutra. Embora dela derive a artista refere Bernini –, a barra oca não é, porém,
barroca. Barroca, a dobra é liberada pela mediação elementar entre veste e corpo veja que o fogo drapeja o manto de Santa Teresa. Barra oca, o tecido, que se redobra , sobra só e não sossobra, por um fio, e, assim, sem recobrar o corpo finito, recobre se retorcido, fazendo se escultura que transborda a figura e vaga pelo figural. A escultura de barra oca tira sarro da outra barroca, pois se nesta a dobra se gesta pelo fio do talho, aquela ganha o talho de dobra por um gesto de fio.
A amarração com fio de cordão ou tira (que do próprio pano se tira) não é mero varal onde o tecido queda sacudido no grau zero de superfície lisa. Sustentadora de estrias, de cordão ou tira, a amarração é pêndulo de enforcado e pedúnculo volátil, e, assim, faz revoar o tecido como acrobata do vácuo, cuja fibra se revira e vibra no ar com ar de viso vário no desvario do olhar visionário: visoviagem via visagem.
Noutra fatura, o cordão envolve tecido ou plástico em voluta. A voluta de cordão, contudo, não se amarra com luta ou na marra: com tudo de volúpia mútua, se, por um lado,
é conduta de visagem, por outro lado, a voluta é conduto do viço e do bulício contido na matéria antes devoluta. O que se dá por feito são obras e esculturas de diversos feitios e estaturas. Miúdas e dispostas lado a lado em pouquíssimas unidades, umas se dão ares de fetiches em altares, tornando presente ao olho, ainda que cético, o ente místico além do estético. Outras, menos miúdas, se prendem como broches na parede, com formas nunca brochas, antes virtuosas, que se exibem ambíguas ou insólitas. Notem-se, também, os rizomas aéreos cuja expansão, dir-se-ia espontânea, se dilata pelas variantes e volumes de torções vertiginosas ao olhar preso ao costume, agora, num lume, surpreso. A voluta, ainda, quando envolve plástico ou tecido, os volve em bichos graúdos que se revolvem em nossa fauna imaginária.
Enfim, dobrando a matéria de velho tecido lívido e opaco plástico usado, Por um fio nos mergulha no silêncio esbranquiçado, refratando, nesse lance, o espaço expositivo. O
material, pela dobra da barra oca e da voluta, ganha o volume da carne e também seu colorido ao encarnar, não o encarnado, mas o encardido. Vistos de perto, os brancos encardidos variam da poluta palidez à hepática tez (bege escura) e, daí, ao cinza da carne suja ou pútrida. São tons eleitos, já que a artista não prepara suas tintas, mas com elas se depara nos objetos e materiais sem valimento, já maquiados pela paleta do envelhecimento. Dir-se-ia que, no seu trabalho, a artista toma a própria mão do tempo que urde a figura e esculpe a estatura do que está suspenso, por um fio, no suspense do desabamento.