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Francisco Rocha

Nem insígnia de festejo profano, nem ícone de cortejo sagrado: Adriana Affortunati aporta e estende a arte do farrapo, porta-estandarte da carne abatida em combate. A artista desfralda o pano intratável da farda trajada no fardo cotidiano, trepa o mastro e mostra o trapo: o cru esgarçado solta no ar calças cansadas e suores acres. Hinos e marchinhas dão lugar ao silêncio grave.

Entre título e obra instala-se a relação mimológica, pois o objeto mira seu reflexo no espelho do signo. Tomem-se dois sentidos que, de imediato, emergem em Pra dar bandeira: urdidura – fiar a bandeira – e desnudamento – ficar de bandeira. Ora, apor o nó não se opõe ao pôr a nu, ao contrário, são um e mesmo ato no trato dado, aqui, ao cru do fato proletário.

O cru é pano rude avesso ao espano do vento, já que à sua carga física acrescem cargas outras, a dos humores da labuta sem classe e a da história da luta de classes. Sem metonímias, o tecido cru do uniforme é o cru tecido da epiderme. Assim, a artista faz a bandeira com a própria pele do guerreiro, tecido que, pela sua carga bem pesada, não daria uma bandeira, mas que, bem pesada a sua carga, melhor bandeira não daria. A bandeira de Adriana Affortunati não tatala, estatela. O cru dá corpo à bandeira e dá bandeira do corpo cru, de modo que o traje da lida se demuda em carne da vida, e se arranca a pele encarnada, se desnuda a veste encardida.

A mimologia do título, longe de ser prescrita em plano, no pano está escrita, já que o nome da obra se pega entre as dobras despregadas. Em seu processo, a artista troça do projeto no traço do trajeto, não escolhe a peça, tropeça no escolho. Destarte, Adriana Affortunati afronta a catástrofe do dejeto e instaura o diagrama da arte objetando ao objet trouvé o objeto desinibido e a libido do abjeto, num enredo de corpo-a-corpo que rasga a renda do ver e se rende à carga do ser. Atente-se que dilaceramento agressivo e sutura grosseira se tornam as operações solicitadas em Pra dar bandeira; com efeito, nelas se extravasa o pulso do trabalho explorado e se vaza a pulsão do humano farrapo.

Deste modo, Estandarte se desfia e desfila: o estilete é o estilista. No estandarte sem divisa, divisa-se, em
pregos-cabides, a grife do açougueiro com seu corte de calças em corte de carcaça. Contemple-se demoradamente a dolorosa beleza, tirada de algum poema expressionista, dessas tiras carnosas ou carnes em tiras, pendidas com pinta de ondulações vívidas e tinta de lívidas secreções.
Barras de contenção, aproveitando ao máximo o cru da calça proletária, no laço das aparas de barras, figura os apuros das barras de aço, ou, numa mesma escultura, costura o entrelaço da cadeia viva e o entreaço da cadeia produtiva.

Linha de frente faz fronte com a brancura do sangue frio e traz horizonte com brilho de íris pálida. No matiz
esvanecente e na textura estriada, acompanha-se o ritmo de uma marcha calada, porém resoluta e cálida.
Muito embora não se componha com o cru dilacerado e, sim, com baganas espetadas, Território, com toda
clareza, faz sistema com a coerência rigorosa de Pra dar bandeira. Vista de longe, a obra territorializa a luta do corpo coletivo em múltiplas escalas, do bairro operário ao mundo proletário. Vista de perto, desterritorializa-se cada bituca de cigarro, bitucas que, antes indiscerníveis na produção em série – tal como os trabalhadores reificados na série da produção –, agora, graças ao corpo-a-corpo diagramático da artista com o objeto, contra a catástrofe do dejeto, avultam revoltas e nos voltam o vulto – qual trabalhador com seu corpo próprio e sua vida única.

Quem mostra na vitrine peça urdida com fazenda vistosa vai fazendo vista grossa para a veste grosseira da vida que dá pano pra manga e muita bandeira. Talhada rudemente pelos calos da artista, e carregada duramente em seus braços, a bandeira sem insígnia de Adriana Affortunati, sendo de si signo, assigna o mundo remendado, redimido.

2023. FRANCISCO ROCHA

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