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Aracne (detalhe), 2015.

Querida Adriana

Para a nossa reflexão, gostaria de propor uma divisão totalmente artificial, em três eixos de interesse apontados por suas obras: ataque à ideia do feminino contida na construção de estereótipos comportamentais e sua associação com ideias de domesticidade; ataque à formas de normatização do conhecimento e codificação da linguagem. Ambos ataques explicitamente indicados pelos títulos conferidos à algumas de suas obras como “Helena”, “Misógino”, “Aracne”, ou então, “Capítulo”, “Dicionário”, “Enciclopédia”. O caráter alusivo dos títulos tensiona a materialidade das obras, materialidade feita, quase inteiramente,por objetos descartados, encontrados, coletados e colecionados, grande parte anônimos. Neste nível de significação, procuram decompor sua codificação cultural. Investigam temas facilmente localizáveis como a historia da indumentária e do design e sua implicação no condicionamento de hábitos da mulher. Você mesma, Adriana, referiu-se em uma de nossas conversas aos manuais de etiqueta e ao papel das dezoito anáguas da roupa feminina na era vitoriana.



Entretanto parece-me importante reconhecer um dado mais sutil, a possibilidade de um outro nível de significado mais fugaz, com o risco de não concretizar-se (basta um deslize mínimo), mas que, ao meu ver, é responsável por dotar as apropriações de objetos do mundo de qualidades poéticas. Os objetos – não eles por si próprios, mas o acúmulo deles – realizam a transição essencial entre os dois primeiros eixos e um eixo temporal. O “tempo” confere espessura à ficção. O “tempo” é o “corpo” da narrativa.



Um olhar excessivamente formal, exclusivamente dirigido para as modalidades artísticas, reduziria o interesse de seu trabalho, circunscrevendo-o por atitudes compositivas, superficialmente pictóricas. O uso dos objetos não se reduz a uma relação nostálgica ou evasiva, cujos sentidos almejam a uma a-historicidade, sobrevivência incorpórea, diáfana. Não. Os objetos buscam reviver tragédias e dores, traumas e emoções reais, espessas e concretamente presentes. Qual categoria de objetos, afinal? Trapos, roupas rasgadas, restos, móveis e objetos decorativos incompletos, já velhos e decompostos. Objetos que guardam marcas do uso repetitivo, que denunciam um comportamento cotidiano (ou obsessivo). “Repetição” em seu trabalho deve ser entendida como revivescência. Revive-se inúmeras tragédias anônimas, identidades que se perderam definitivamente.



O conteúdo trágico é declarado nas alusões feitas às personagens mitológicas. “Aracne”, por exemplo, nome que intitula a exposição. Segundo algumas versões do mito grego, trata-se de uma exímia bordadeira, razão pela qual desafia a deusa Atenas, que rege também as artes manuais e domesticas (arrogância de Aracne ou revolta contra a soberania opressora?). Ganhando ou perdendo, será sempre derrotada (autoridade dotada de força repressiva descomunal). Ao perder, é poupada da morte, mas transformada em aracnídeo (marca anatômica e repetição infinita do trauma, condenada à eterna tessitura da teia). Podemos ainda acrescentar sentidos externos ao mito, como agressividade, ameaça e, claro, fluxo de tempo no qual se constrói um emaranhado.



Se “corpo” e “tempo” se equivalem numa ameaçada transfiguração; se esse corpo consiste em uma volumetria feita de camadas de tecidos e objetos; comportam-se, pois, como sedimentos temporais, camadas geológicas (haveria definição equivalente em termos temporais?). Mas justamente se trata, a meu ver, de objetos que ainda não fossilizaram, não foram soterrados. Esses corpos anônimos e seus sintomas permanecem visíveis, em permanente decomposição. Como em um velório, participamos de maneira solene. Velamos, todos nós, as tragédias ocultas insinuadas pelos objetos e nossas próprias narrativas.

- Texto originalmente datilografado em máquina de escrever.

2015. RENATO PERA

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